18.10.07

Traduza se for capaz

"Googlando" pra saber a tradução de "margarina" para o inglês (dever de casa do meu filhotão Artur), achei esse texto totalmente interessante, com uma reflexão legal ao fim, vale a pena ler:

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Se você gosta de traduzir do português para o inglês, divirta-se com o texto abaixo

Sábado, fim de tarde, juntavam duas ou três mesas e os garçons vinham trazendo tira-gostos e cerveja, metodicamente, até que alguém pedisse a dolorosa. Eram todos sessentões, a maioria já aposentados, os outros se aposentando e cada vez mais sedentários e ociosos. Só o Aníbal não tinha parado: fazia direito, um sonho que acalentava desde a infância e só agora podia realizar. O Alcir, espírito de porco como ele só, uma vez disse que a única coisa que o Aníbal fazia direito mesmo era encher a cara. O outro não gostou e disse que ia mesmo era encher a cara do amigo. O Armando olhou para um e para outro, com as mãos espalmadas para cima, na posição de orante, que, naquele contexto específico, significava "qual é, minha gente" e ficou por isso mesmo, mas a amizade ficou meio rachada.

Naquela tarde, a conversa ziguezagueava numa selva de abobrinha e, aos poucos, foi decaindo para as abstrações éticas, como tantas vezes ocorre em conversas concretamente etílicas. Então o Jair disse "vocês vêem, por exemplo, o caso do Zé Dirceu…" O Carlos Alberto, petista roxo, que, por uma questão de princípio, jamais tinha pisado na outra calçada da Maria Antónia, olhou feio. O Armando, o rei do deixa-disso, adivinhando a procela no horizonte, interrompeu: "gente, não vamos fulanizar a questão!" O Jair acrescentou, "pô, meu, não fulanizar por quê? Os caras estão até aparelhando o Itamaraty, meu. Daqui a pouco até o cisne vai virar melancia! Tá certo isso?"

O Carlos Alberto levantou, roxo de raiva, com os punhos cerrados, pronto para as vias de fato. O Armando insistiu, “Calma, gente, não vamos nos exaltar. Não esquenta a cabeça.” O Aníbal, que não era racista mas achava que a melhor coisa do mundo era uma loira suada depois de uma branca pura, contribuiu, com voz gosmenta: "não esquenta a cabeça, que derrete o chifre." Aí foi o Jair que se viu obrigado a agir como homem. Fazia poucos anos que ele tinha trocado a pelanquenta e sensaborona Neusa pela apetitosa e espevitada Fabiane, e ficava sempre com a pulga atrás da orelha com essas coisas. Mas antes que ele partisse para a ignorância, o Armando entrou em cena de novo, com sua costumeira vaselina: "não liga, o Aníbal já tá de porre, não dá bola."

O Orlando, sempre realista, levantou o braço, para atrair a atenção de um garçom, e fez como se escrevesse alguma coisa com a mão direita sem caneta na mão esquerda sem papel. O garçom logo trouxe a conta, sem se esquecer de adicionar mais duas porções de calabresa que jamais tinham saído da cozinha.

Saíram todos amuados, como sempre, sem se despedir. O Aníbal, com a mente meio turva, foi trocando as pernas, em dúvida se parava alhures e tomava mais uma ou duas para rebater ou se ia direto para casa. Entre cila e caribde, resolveu sentar num banco de jardim, para descansar o corpo e pôr a mente em ordem. Acordou de madrugada, com gosto de cabo de guarda-chuva na boca e a bexiga estourando, mas sem a carteira, que tinha caído no chão e sido levada por alguém. "De novo!" resmungou. "Pelo menos, desta vez, deixaram o celular", filosofou, enquanto se aliviava numa árvore amiga, apoiando-se com a mão, ainda algo inseguro na sua verticalidade. Chamou um táxi do ponto perto de casa, onde tinha crédito. Ia chegar com o sol nascendo e ia ser o diabo. Paciência. Fazer o quê? Há que enfrentar a vida.

Por que escrevemos esta longa bobagem? Basicamente para testar uma tese. Uma das nossas broncas de certo tipo de crítico ou teórico é a mania de achar que a dificuldade de uma tradução é diretamente proporcional à qualidade estética do original. É nada! A crônica acima, de pífio valor literário, tem uma grande quantidade de dificuldades de tradução, talvez nem todas muito fáceis de perceber. Achamos, inclusive, difícil que alguém produza uma boa tradução, mantendo todas as alusões e jogos de palavras, em menos tempo do que os quarenta minutos que nos custou escrever e revisar o original.

Nem se trata de um texto complicado, poético. Dos termos usados, alguns poucos podem trazer dificuldade ao nativo pouco versado em política. O resto é português brasileiro coloquial.

"Maria Antónia" é uma rua em São Paulo onde fica a Universidade Presbiteriana Mackenzie e, do outro, ficava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). em 1968, os direitistas do Mackenzie e os esquerdistas da USP se enfrentaram ali em luta armada. "Melancia" era o nome pejorativo que a direita dava aos esquerdistas, porque eram "verde-amarelos por fora, mas vermelhos por dentro". "Aparelhar" é um termo de jargão político, que significa "transformar um órgão público em ferramenta do partido". Por fim, o "cisne" é, de fato, uma referência a essa ave, que o Itamaraty tradicionalmente criava em seu prédio original no Rio e continua criando em Brasília.
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